No final da década de 90 Francis Fukuyama escrevia sobre o “fim da história” em alusão ao término da Guerra Fria. O conflito, que opôs União Soviética e Estados Unidos, ficou por conta da polarização ideológica e da captação de países para zonas de influência, não representando um enfrentamento direto entre as duas potências. Com a derrubada do muro de Berlim em 1989 o mundo acompanhou a derrocada dos soviéticos e países aliados. Deu-se como certo o triunfo do modo de produção capitalista no mundo ocidental. Com ele vieram novas formas de organização da sociedade e do Estado; novas formas de estruturação econômica e política. Na América Latina, em especial, esse momento coincidiu com o fim dos regimes militares que assolaram a região entre os anos 60 e 70.
O ciclo da redemocratização nos países latino americanos, iniciado na década de 80, permitiu que novas forças e movimentos sociais ganhassem visibilidade e poder político. Em matéria econômica, especialistas afirmavam que a liberalização e desregulamentação do mercado eram necessárias (e urgentes) para superar os efeitos da “década perdida”. André Calixtre, mestre em Economia Social do Trabalho pela Universidade de Campinas argumenta – em artigo publicado pela revista Carta Capital – que “o impulso da redemocratização construiu ao longo da década de 80 frustrações civilizatórias: economias estagnadas em seu PIB per capta, taxas crescentes de desemprego, uma incapacidade de resolver a vida de milhões de cidadãos na extrema pobreza e de equacionar a brutal desigualdade herdada do período ditatorial”.
A solução, portanto, era uma reforma estrutural voltada para o mercado financeiro. Foi dada a largada para um projeto de reformulação econômica neoliberal que previa, dentre outras coisas, a retirada do Estado de setores estratégicos, como a saúde e educação. A ideia central do projeto neoliberal era transferir para a iniciativa privada projetos de infraestrutura, empresas públicas e serviços para assim “desestatizar” setores da economia e diminuir despesas públicas. Os resultados dessa empreitada foram sentidos pela maioria da população de baixa renda, não só no Brasil, como em outros países da América Latina: recessão, aumento nas taxas de desemprego, inflação alta, desvalorização cambial; privatizações; elevação nos índices de pobreza, dívida externa exorbitante, etc.
Durante todo o final dos anos 80 e década de 90, tomaram parte do governo nacional partidos políticos e lideranças de centro-direita que defendiam diretrizes neoliberais e alinhamento incondicional aos Estados Unidos. Foi assim com Collor e Fernando Henrique, no Brasil; Carlos Menem na Argentina; Alberto Fujimori, no Peru; Carlos Andrés Peres, na Venezuela e Gonzalo Sanchez de Lozada, na Bolívia. Em meio a inúmeras pressões e problemas econômicos, destes governos irromperam graves crises institucionais, sociais e políticas que possibilitaram uma reformulação no continente, a chamada “onda rosa”, que atingiu seu auge na primeira década dos anos 2000.
Salvas as especificidades locais, a onda rosa foi um marco para o desenvolvimento da região. Começou com Hugo Chávez, na Venezuela, em 1998; seguiu com Ricardo Lagos, em 2000, no Chile; Luiz Inácio Lula da Silva, no Brasil em 2002; passando por Néstor Kirchner na Argentina em 2003; chegando na eleição de Evo Morales na Bolívia, em 2005. Destacando apenas alguns líderes podemos perceber que a guinada à esquerda foi uma marca dos governos nacionais no início dos anos 2000. Isso se deve, em parte, ao desgaste das políticas implementadas no período anterior. Porém, conforme aponta o professor Fabrício Pereira da Universidade Federal Fluminense, “não é somente com as insuficiências do modelo neoliberal (notadas em toda a região) que essas crises se relacionam, é também com o esgotamento de formas de organização estatal, dominação social, baixa inclusão político-social e monopólio partidário, expressos em mais largas durações.” A população desses países ansiava por inclusão, reformas sociais, direitos, oportunidades econômicas e empregos. Muitos desses objetivos foram conquistados durante a leva dos governos progressistas citados anteriormente, em maior ou menor escala.
Considerando esse cenário, grande parte dos candidatos eleitos nesse período conseguiu eleger sucessores ou mesmo se reeleger. Em alguns países o modelo inaugurado no início dos anos 2000 permaneceu por pelo menos mais dez anos. Na Venezuela, o líder Hugo Chavéz foi sucedido por Nicolás Maduro, adepto ao chavismo; no Brasil, Dilma Rousseff foi eleita (e reeleita) como a primeira mulher presidente da história do país, com a responsabilidade de dar continuidade ao projeto de Lula; o mesmo aconteceu com Néstor Kirchner e Cristina Kirchner na Argentina que juntos somaram 12 anos no poder.
Assim, em linhas gerais, podemos dizer que a união desses governos trouxe de volta a estabilidade política para a região, além de uma elevação dos índices sociais e retração do nível de desigualdade e pobreza. Na economia, a onda de governos progressistas adotou um modelo neodesenvolvimentista, baseado no fomento ao mercado interno, a indústria e ao consumo nacional, além do incentivo à programas de distribuição de renda; já política externa ficou marcada pelo questionamento a hegemonia estadunidense e pela criação de novos mecanismos de integração regional e multilateral – como a UNASUL e o BRICS.
Os avanços são visíveis e as políticas de desenvolvimento pautadas por igualdade e valores democráticos foram o carro chefe dos governos progressistas na América Latina. Entretanto, sabemos que a política, se não oxigenada, torna-se desgastante. Em 2014 o então presidente do Equador Rafael Correa já previa o reordenamento da direita em nível internacional. Em declaração ao jornal Folha de São Paulo, Correa apontava para o início de uma “reestruturação conservadora”. De fato a onda conservadora atingiu em cheio as aspirações progressistas latino americanas.
A derrota de Evo Morales no referendo bolivariano no início deste ano, marcou o início de um processo de mudança nas diretrizes políticas e econômicas da América Latina que começaram a se desdobrar na região há pelo menos dois anos . A vitória de Mauricio Macri, na Argentina em 2015 e o impeachment da presidenta Dilma Rousseff representam uma nova fase de transformações políticas desta vez com traços de saudosismo à regimes autoritários e reformas liberalizantes dos anos 90. O ciclo reacionário consegue a cada dia reunir mais simpatizantes. Os direitos sociais correm perigo. Hoje, mais do que nunca, é necessário que a esquerda se mobilize e, mais importante, se reformule, para atuar em defesa dos direitos conquistados durante os 15 anos em que esteve no poder.
Gavazzoni & Bandeira de Mello
* Com colaboração dos portais: BBC, Opera Mundi, Brasil no Mundo, Folha de São Paulo, IstoÉ, O Globo, Portal Vermelho, El País, Estado de São Paulo, A Tribuna, Revista Veja